Estive lendo o fantástico Imanência Absoluta de Agamben. Ali ele apresenta um esquema em que a transcendência vem de Kant e chega a Husserl, a imanência vem de Spinoza e chega a Nietzsche - depois, aparece um detour por Heidegger em ambas as linhagens e depois de Heidegger, aparece do lado da imanência Deleuze e Foucault e do lado da transcendência Derrida e Lévinas. Há um atalho direto entre Nietzsche de cima e Deleuze e Foucault de outro - o atalho sugere que a passagem por Heidegger é dispensável.
Agambem pensa, tentando fazer jus aos últimos textos de Foucault e Deleuze ('La vie: l'experience et la science' e 'L'immanence: une vie...'), que a filosofia que vem será em algum sentido novo uma filosofia da vida e que nela a relação da ontogia tanto com a epistemologia quanto com a política terão que ser colocadas de outra maneira. A vida aparece como pura possibilidade - como potência beatificada completa onde, de acordo com Spinoza, desejo e vida se tornam inseparáveis. Uma tal imanência absoluta não está na vida, mas antes em "uma vida..." que é o conceito que Deleuze cria para tratar da reação dos circundantes a agonia de Riderhood de Dickens: o interesse era por uma vida, a descrição indefinida que determina a singularidade, faz uma determinação transcendental (e portanto na imanência mesma já que a experiência é que constitui o campo transcendental de Deleuze). Ou seja, as pessoas estavam interessadas em uma vida, e não na vida do perverso Riderhood. A imanência é assim uma vida, nenhuma vida em particular, mas uma vida, considerada no singular indeterminada empiricamente (ou melhor, transcendentemente) mas determinada transcendentalmente.
Uma digressão: me interessa isso porque estou escrevendo um texto que se chama, por enquanto, 'a metafísica das descrições indefinidas'. Trata-se também da nossa velha questão acerca de se um... é uma melhor maneira de lidar com a singularidade do que um nome próprio (Russelliano) ou uma descrição definida precedida de um operador de designador rígido. É uma querela Russell vs Deleuze acerca de que termos melhor apontam para a singularidade. E aqui Deleuze diz que o um..., o uma... evoca o campo transcendental, ou seja, aquilo que é indeterminado na ordem das descrições (que chamei acima de ordem transcendente) mas que determinam um componente de um campo imanente - para ele o que é imanente é transcendental, a experiência é transcendental - determina as condições de possibilidade. É o tal empirismo transcendental que parece um monstrengo a primeira vista. Isso me interessa por outro motivo: venho tentando bolar uma teoria da experiência que a coloque não na ordo cognoscendi, mas na ordo essendi - ou seja, que a apresente como parte do mundo e não como parte dos recursos para termos acesso ao mundo. O tal empirismo transcendental entende a experiência como transcendental, e não metafísico - e já embanana lindamente esta distinção que faz sentido em Kant... A manobra é cativante.
Fim da digressão. Mas agora podemos pensar que a uma vida... está muito próxima da vida nua ou da vida nutiritiva de Aristoteles ou da vida vegetativa dos médicos. Agamben faz duas distinções interessantes entre elas: primeiro, a uma vida... não tem dono, não é propriedade, proprietária - é como se fosse uma pura potência, pura possibilia. A vida nua é de alguém, não é pura imediatez como Deleuze e Guattari insinuaram uma vez. A outra distinção: em uma vida... não podemos falar de distinçoes entre vida vegetativa/bios etc. Ou seja, em uma vida... não há conceitos ou ordem - apenas imanência em estado absoluto.
Esta vida é que tem que ser pensada sempre como sendo o objeto do poder - biopolítica significa o poder preda a imanência; a transforma em vida nua. Aqui o transcendental, aqui o poder, aqui a metafísica: o mobiliário imanente do universo. Poderes, reatividade, o estriado - e a imanação de uma vida...
Para quem quiser mais sobre mosaicos e pensa que já Lucrécio era um bravo Humeano, pús um Lucrécio no bucalumbrello.blogspot.com