luni, 4 august 2008

Linhas de fuga: o caráter holista das potências

Ainda no meio da Seoul enorme porém já depois de falar sobre ontologia do descabido para uma audiência quase toda russa - frustrante, esquisito mas exótico e extemporâneo - vou tentar voltar ao tema da última postagem: resistências vs exceções. Uma ontologia da anomalia postula que as singularidades são exceções e todas exceção é uma exceção a alguma coisa. Uma linha de fuga. Ou seja, as anomalias são a base do caráter não-fascista da ontologia: elas são um repositório de poderes que podem ser entendidos como resistências e capacidades. As singularidades resistem e, assim, a anomalia (o descabido) desterritorializa - é o agente desterritorializador. Não existe singularidade que não é exceção - todas estão in media res - mas é isso que lhes dá condição de desviar de alguma coisa. Ela é o desvio. Pensada assim, a singularidade não é nem apenas um fardo de propriedades - porque ela é uma exceção, uma anomalida e não tem cabimento - e nem apela para um substrato indescritível porque ela é uma linha de fuga, uma direção de desterritorialização.
Agora, quando imprimimos uma ontologia das potências sobre uma ontologia do descabido começamos pensando que a singularidade em fuga (o desvio) é potência. Trata-se de uma resistência e toda resistência é uma resistência a alguma coisa. Mas a ontologia das potências nos tira de uma perspectiva preciosa que alcançamos através da ontologia do descabido: ela nos recoloca às voltas com alguma coisa parecida com o que McDowell uma vez chamou de "a sideways-on view", ou seja, uma visão desde fora em que as singularidades em fuga podem ser entendidas em termos de suas potências de resistência (seus potenciais de resistência, talvez). Ou seja, de um ponto de vista da ontologia das potências, a anomalia pode ser vista em termos de que coisas ela PODE resistir - que coisas ela PODE desterritorializar. A introdução da modalidade (das disposições) pode ser claustrofóbica: imaginamos que vamos terminar com uma longa lista de potências (ou resistências) associadas à singularidade desviante - como uma análise condicional da singularidade com um número grande de cláusulas (tipo: se diante de um regime como o da coréia do sul, S resiste; se diante de um regime como o da coréia do norte, S resiste; se diante de um regime heterosexualista , S resiste etc.). Já vemos o problema: não escapamos mais do dilema fardo vs substrata: discriminamos a singularidade em termos de potências (resistências) e ela deixa de ser apenas uma linha de fuga para ser capturada em termos de suas potências - fica dominada (ainda que apenas modalmente dominada). O fardo é completo (supostamente) e apenas por outras razões metafísicas postularíamos um substrato (tipo uma haecceitas da singularidade). Fica parecendo assim: danou-se.
Depois de jarras de cerveja, bibimpags, vermicellis, e chás gelados pelas noites coreanas, eu e o Manuel nos encontramos muitas vezes diante dessa questão: qual é o preço de sobrepor a uma ontologia sem cabimento (onde a potência fica insinuada nas singularidades em fuga) uma ontologia de resistências e capacidades? Será que o preço dessa integração é que ficam as singularidades dominadas? Começamos a repensar os atrativos de uma ontologia de potências pensando talvez que a lua de mel com os poderes acabou (outras luas, de nabo, de arroz, de wasabi, de gimchi, de acelga virão ainda talvez).
Bem, as tais potências são holistas (cheias de intencionalidade física, com singularidades com bracinhos para fora etc). Ou seja, elas dependem de todas as potências que aparecem no mundo. Dizemos assim: qualquer coisa pode ser uma linha de fuga se colocada em um cenário apropriado. Ou seja, não podemos oferecer a tal listona parte de uma análise condicional da singularidade porque cada singularidade tem potências que dependem das demais (e do que acontece no plano de organização). Não se trata de dizer que o fardo de potências de uma singularidade é infinito porque isso logo invoca uma imagem assustadora de alguém que pode contemplar infinitas potências. Mas, para invocar uma distinção clássica, que o fardo de potências é indefinido. Que ele depende de todo o resto do mundo (mônadas, mônadas, mônadas). Depende do que faz corpo com o que. Trata-se, de novo, de um jogo de imãs. Não é que todas as resistências de uma singularidade estão nela, resistências são intencionais. Extrínsecas. O pensamento tenta encontrar ruas e avenidas (não saídas) em meio a estas potências indeterminadas. Desvios requerem o resto do mundo - tudo pode desviar mas nada desvia (ou resiste) sozinho.
Fica parecendo que o que é indeterminado é menos claustrofóbico. Mas será que a manobra de insistir na indeterminação é suficiente para tornar digerível a mistura de ontologia do descabido com ontologia das potências?

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