miercuri, 31 decembrie 2008

algumas primeiras doxografias (para encerrar bem o ano, pois é bom encerrar começando)



1- No seu fragmento 147, Heráclito tenta responder à sugestão de Deleuze que a política deva ser pensada antes da ontologia (Mil Platôs). A questão de Heráclito é a tentativa de lidar com o problema que emerge após os principais investimentos da filosofia contemporânea continental, especialmente depois de Heidegger, de Agamben e do próprio Deleuze. O panorama é o seguinte: na ontologia sem metafísica de Heidegger, o ser deixou de ser substância, substantivo, presença e desvelou-se como verbo, acontecimento, evento, um inapreensível fundamento nulo, o sem fundo de um abismo cujo véu é o nada. Pela primeira vez o ser “não é”. Esse âmbito do negativo – o inapreensível, o indizível, o sem fundo abissal – foi superado em Agamben, para quem o ser é aquele que pronunciamos e precisamos pronunciar (por questões políticas!), todavia, sem que o fixemos na palavra. Agamben fala do “ser qualquer” ou da singularidade qualquer, o vulto. Mas será com Deleuze que a ontologia será completamente desconstruída em uma dança de devires, linhas de fuga, velocidades e rizoma, onde o ser já não encontra mais nenhum lugar. Assim, Deleuze afirmará que antes da ontologia precisamos pensar a política. Para Heráclito, portanto, a pergunta é inevitável: depois de Heidegger, Agamben e Deleuze, que ontologia nos resta? O seu fragmento-pergunta vem sugerir que a inversão entre ontologia e política operada por Deleuze, que aponta, talvez possamos afirmar, para a superação da ontologia, não é um caminho necessário, nem mesmo o melhor caminho. Mas não significa que tudo deva permanecer como antes. Como testemunhamos em outros fragmentos, para o filósofo grego, a ontologia que resta é uma ontologia do polemos, ou seja, uma ontologia do embate vigoroso que se dá, como sugeriu algumas vezes, por meio de pequenos des-locamentos ou por dis-posições – uma ontologia despótica. O polemos diz o modo como as coisas são. Todavia, porque o polemos remete a uma micropolítica dos pequenos des-locamentos, nessa ontologia, ética e política se misturam. Portanto, a ontologia não é mais superior à ética e à política como aspirava Aristóteles, mas tampouco a política e a ética são anteriores à ontologia, como desejavam Deleuze e Lévinas. Podemos, enfim, despedirmo-nos da pretensão de uma filosofia primeira. Heráclito quer pensar uma ontologia na qual ser e política necessariamente se confundem. Assim como defendeu belamente no seu fragmento 128: “sem o risco do político não há o que fique na natureza.”

2- No fragmento 154, Heráclito deixa escapar a clara influência sofrida de Deleuze. O filósofo francês afirma: “(...) É verdade que Heidegger conserva o tema de um desejo ou de uma philia, de uma analogia, ou melhor, de uma homologia entre o pensamento e o que existe para ser pensado. É que ele guarda o primado do Mesmo, apesar de supor que este reúne e compreende a diferença como tal. Daí as metáforas do dom, que substituem as da violência” (Diferença e repetição, p.210, nota 9). Embora Deleuze não tenha sido suficientemente justo com Heidegger, pois parece não ter considerado Introdução à Metafísica onde aparece, explicitamente, o tema da violência na discussão de Heidegger sobre o polemos heraclítico, é fato que o ser como dom é aquele que impera no pensamento do filósofo alemão. Assim, parece que o polemos termina “domesticado“ pela philia. Ora, mas o polemos domesticado é o que Heráclito não quer. Por isto afirma que o polemos, e não a philia, diz respeito ao acontecimento das coisas.

3- É sabido que Heráclito, tendo conhecido muitos poetas, tantas vezes preferia a poesia à filosofia. É que o poema parecia ser mais íntimo às coisas. Isso ele invejava em Empédocles, que era mais talentoso para filosofar “poeticamente”, como dizem alguns. Enfim, o que importa é que Heráclito, que teve a oportunidade de conhecer Leminski, inspirado pela sua poesia, não hesitou em afirmar o que ficou conhecido como seu fragmento 153. É que, para o filósofo grego, o poeta traduziu o polemos como nenhum outro filósofo seria capaz. Nas palavras de Leminski: “(...) arrisco crer ter atingido um horizonte longamente almejado: a abolição (não da realidade, evidentemente) da referência, através da rarefação.” Para Heráclito, o polemos nada mais é do que o enfraquecimento (não a negação) da referência.

4- Quando nos aproximamos de Heráclito, o Obscuro, precisamos ter olhos e ouvidos bem abertos. Lemos o fascinante e enigmático fragmento 138 e nos perguntamos: mas como podemos “nos separar” do polemos? Será que tudo o que há não é, na verdade, embate polêmico? Inclusive as separações? E será que não era isso mesmo o que Heráclito desejava mostrar? O mesmo pode ser dito do fragmento 148: ora, como esquecer o polemos? Não acredito que Heráclito tenha afirmado outra realidade oposta ao polemos, que tenha erguido inimigos externos e polarizado a guerra em um raciocínio binário, mas, de modo diverso, que tenha apenas tentado nos fazer ver, como gosta de dizer, o sentido despótico do polemos que perfaz tudo. Mesmo quando “pomos” e o polemos “dis-põe”, como anuncia o fragmento 140 – um dos mais belos de Heráclito e que nos conta uma verdade inegável –, podemos entender esse diálogo como um jogo de deslocamentos do mesmo (não do idêntico!) que compõe a sinfonia dos devires. Um devir é puro embate polêmico. Também as identificações, individuações, especificações, tipificações e registros são constantemente exigidos e, ao mesmo tempo, desconstruídos pelo polemos, pois são sempre aquilo que instauramos “a partir” do polemos. Interpretamos essa condição não como uma oposição, mas como uma co-operação que, por sua vez, não afirma um ajustamento de dois distintos, senão um emaranhado de forças e dis-posições. Seja como for, não temos nunca a banalidade de uma mera oposição polarizada. E a leitura que estamos defendendo fica clara, por exemplo, pelos fundamentais fragmentos 155, 152 e 137, entre alguns outros. Sabemos, todavia, que tudo isso ainda precisa ser melhor esclarecido.

5- Quem não compreendeu como podemos nos separar do polemos ou como podemos dele nos esquecer, não entendeu que a physis, que é polemos, gosta de ocultar-se (frgs. 156 e 157). Os poderosos da vez (frg.138) e a Política (frg.148) não são oposições ao despotismo polêmico, mas desdobramentos que sobram quando o polemos escapa de repente, sem dar qualquer aviso, pela porta dos fundos. Ou mesmo resistências que impomos quando nos incomodamos de recebê-lo, repentinamente, em nossa sala de visitas pela porta da frente. Não somos “outro” do polemos, mas somos e estamos no próprio polemos, mergulhados no embate polêmico com tudo o que há. O que nos falta compreender é que os sentidos dos des-locamentos são infinitos e vão das revoluções aos embalsamentos. Mas nada é fixo embora, às vezes, possamos nos iludir a respeito. Os muitos des-locamentos esbarram continuamente uns nos outros – amam-se e estranham-se e criam novas dis-posições. Tudo é desejo.

6- O desejo, para Heráclito, não é uma disposição psicológica nem tampouco remete a algum tipo de subjetivismo. Isso Heráclito sabiamente decidiu manter da antigüidade grega, em particular, pré-socrática: a inexistência do sujeito e de qualquer tipo de subjetividade. Melhor assim, pensava o filósofo, para quem a idéia de sujeito ou mesmo a de interioridade causava arrepios. De nenhuma forma o filósofo grego propõe um humanismo. Desejos são forças dis-postas, forças despóticas que assumem certas direções e não outras, para depois assumir outras e não certas, em uma dança de devires fluídos e rizomáticos. Desejo é o acontecimento do polemos, como bem defendeu o filósofo (frg.160) e, para afirmá-lo ainda com mais clareza, em algum momento Heráclito referiu-se ao “amor envolvente” de Empédocles (frg. 159), a quem ninguém poderia acusar de humanista (como podemos notar, Heráclito tinha a mania de jogar humanismo, subjetivismo e interioridade no mesmo saco, sem qualquer distinção). Para ajudar Heráclito, poderíamos também falar de Buber, para quem, apesar do seu noto humanismo, o amor não é algo que alguém possui ou que de alguém emana, mas é o que acontece “entre” (Eu e Tu, p.17). Talvez isso nos traga alguma luz. Desejos são o “entre” (a dificuldade é entender se há algo que não seja “entre”- o que há além ou aquém dos desejos?). Os desejos constituem a micropolítica do polemos.

7- Muito se discutiu sobre o fragmento 119 de Heráclito: ethos antropos daimon. Destacamos duas posições - a de Heidegger e a de Agamben - que contestam a habitual interpretação do fragmento como “o caráter do homem é o seu demônio”. Tudo depende de como compreendemos daimon. Para o filósofo alemão, daimon significa “o Deus”. O “Deus”, por sua vez, pode ser entendido como o “não familiar”, o extraordinário, que, para Heidegger, nada mais é além do acontecimento do ser. O daimon traduz, portanto, a presença do extraordinário no ordinário. Daqui podemos interpretar o ethos, entendido por Heidegger como a habitação humana, como o espaço de manifestação da verdade do ser e, assim, o filósofo alemão pôde ler o fragmento 119 da seguinte forma: “a habitação (o familiar) é para o homem o aberto para a presentificação do Deus (o não familiar)” (Carta sobre o humanismo, tradução de E. Stein). Agamben discordará desta leitura. Para o italiano, daimon não representa a figura divina, mas é esclarecido a partir do verbo daiomai que significa “lacero, dividido”. Portanto, temos daimon, o que lacera, cinde e divide (A linguagem e a morte, p.128). Desse modo, para Agamben, o fragmento de Heráclito fica assim: “ O êthos, a morada habitual, é , para o homem, aquilo que lacera e divide”. A interpretação do filósofo italiano abre uma compreensão muito nova sobre o fragmento heraclítico e, à luz dos fragmentos posteriormente encontrados, remete-nos imediatamente ao polemos. O que lacera e divide pode ser lido como o que des-loca e dis-põe. Poderíamos, então, dizer: “a morada habitual do homem é o seu polemos”. O humano somente está “em casa” habitando o polemos. Daí podemos arriscar esclarecer os novos fragmentos 164 e 167. Tudo que acalma, tudo que acomoda, tudo o que é virtuoso é um demônio para o humano porque corrompe enquanto separa do polemos. Mas, por outro lado, o próprio polemos, ou seja, tudo o que cinde e divide, tudo o que dis-põe, é uma virtude para o humano porque lança-o no acontecimento das coisas. O polemos é o nosso ethos.

2 comentarii:

hackceitas spunea...

com essas doxografias entendemos bem o daimon como lacerado. fantástico.
acho que heráclito deixou um aforismo assim: tudo depende do polemos, até o conhecimento do polemos

differance spunea...

bem que você podia fazer uma doxografia desse aforismo...