miercuri, 24 iunie 2009

Fragmentos de 269 a 275

269. As partes do mundo não são independentes – cada uma se liga a um esboço de outras. Diziam-me que há quem possa ver o mundo em um grão de areia. Pode. Mas em um grão de areia cabem mundos demais, todas as produções da physis da areia e na areia cabem em um grão. Quando um embate de physis entrelaça dois grãos de areia, alguns mundos desaparecem, outros surgem. Este entrelaçamento é feito quando os grãos embatem, esbarram: um embarca no outro. É feito de polemos. Há quem possa ver o mundo em todos os grãos de areia – e gotas de água, e lufadas de ar, e chamas de fogo. Há um rascunho do mundo em cada gomo de tangerina. Mas o mundo não pode ser abreviado em parte alguma, nem numa coreografia de devires, nem numa estratégia de combate, nem numa coleção de ordenamentos e menos ainda em um princípio universal de todas as coisas. O polemos é solto porque perambula como um guardião da inabreviabilidade do mundo – ele não pode ser representado. Mas que não haja abreviaturas é coisa que não precisa ser guardada, basta ao polemos um corpo que cai. Há no mundo muitos pedaços que não se rendem a coisa alguma – nem à água, nem ao fogo, nem à terra, nem ao ar e nem a qualquer elemento da tabela periódica. E estes pedaços aparecem por toda parte. Não se rendem, mas infectam. A physis não é feita de sertões que invadem o mar, nem de mares que viram sertão: de rios cujas águas se misturam. Em um rio há o rascunho de muitos outros; nada representa nada, tudo está rascunhado. E eventualmente as coisas são passadas a limpo – em novos rascunhos.

270. Nas peças da physis há muitas re-encenações, e com finais diferentes. Muitos ensaios, muitas novas apresentações com o roteiro modificado. Não há edição padrão ou versão oficial. Também não há nada como as obras de referência. É que a natureza não tem constituição, tem talvez muitos retalhos de leis, casuísmos, jurisprudências antagônicas, códigos em conflito. E ela ama esconder-se entre os retalhos.

271. Amansamos a natureza para poder amansar as pessoas. As tais leis da natureza inserem medo e indolência na cabeça das pessoas. Tudo apenas obedece: estamos em um universo de servidão. E o que parece possibilidade é apresentado como se fora uma permissão, um salvo conduto, uma concessão – de algum soberano compassivo. Natureza domesticada, gentes obedientes. Para isso têm cada dia mais direitos. A cada ano que passa, torço mais pelo desgoverno. Sempre estive com os servos, e quero acabar com eles; os senhores não me importam Quem jamais pode ter alguma coisa mais a perder a não ser grilhões? (É que ganhar ou perder só ocorre ao que subjaze.)

272. Onde não há leis é que há política. Eu sempre quis dizer: em parte alguma há leis. É que não há o que simplesmente há – em nenhum lugar a physis se transforma em inventário, nem em algum âmago das coisas, nem em algum lugar alhures, onde tudo está pronto. As coisas são sem âmago, como crianças que foram geradas de crianças. Nem o polemos, meio sem fim por onde as criações surgem das crianças, fica parado em alguma parte. É fácil tirar da existência algum princípio geral que faça de qualquer coisa apenas mais do mesmo. Tento, a cada passo, não tomar a existência mais a sério do que qualquer outra ardência.

273. Uma associação do pensamento com o almoxarifado do mundo me assusta. Pensa-se como se estivéssemos descortinando alguma coisa. Estamos nus apenas quando não estamos vestidos – nada é mais explícito que nada. Tiramos as roupas, mas apenas para mostrar alguma coisa que estava escondida e que vai voltar a se esconder para que outra coisa possa ser despida – não há a última pele. Physis ama esconder-se: ninguém vai desmascará-la de uma vez por todas. Nenhum corpo pode ficar completamente vestido, nem completamente pelado – o pensamento não tem nada que ver com o universo nu. O polemos não é nada mais do que o biombo de onde as roupas são tiradas.

274. O logos: quando penso nele agora ele parece como uma toupeira, uma lavradura. As pessoas governáveis – por exemplo, aquelas governáveis pelo que andam chamando de lógica – são aquelas que tomam algumas palavras como mais poderosas que outras. Muitas vezes são as palavras escritas, ou aquelas que merecem ser escritas, publicadas e repetidas diante de qualquer novidade. Vejo os ontólogos e os vendedores de princípios gerais tentando encontrar joio no meio do trigo das palavras. Os lógicos dizem que já o encontraram: as palavras por meio das quais, dizem eles, o logos faz suas artimanhas. Mas eu sempre repito que há mais no universo do que um mantra escrito em um vocabulário recôndito, como uma mathesis universalis. O logos escava o mundo. Quando ele nos faz dizer que em tudo há buracos por onde se cavam túneis, ele não expressa um mantra que foi revelado: as palavras só podem se relacionar com o mundo se elas forem atoras, se elas forem agentes performativos. Nenhuma palavra deixa de ser preconceito. Nenhuma palavra fixa residência em sua escrita. Palavras, como todo o resto do que encontramos, não ficam prontas. Eu falo do logos, minha ferramenta de demolição, porque sempre estive cercado de quem acredita que pode haver umas palavras mágicas propícias para qualquer ocasião. Falo do logos, como falo do polemos e da physis, mas estas palavras não são rainhas da cocada preta, elas são apelas boas atrizes. Quanto a comunidade dos desgovernados que quero construir, nela não há palavra que é arché, qualquer palavra é constantemente desmantelada.

275. E não gosto que repitam trechos que encontraram dos meus escritos como se fossem slogans para qualquer campanha. Há querelas nas quais eu preciso dizer o avesso do que eu já disse – para outras, nem o avesso, uns grunhidos me bastam. Sempre tenho sustos com a palavra escrita.

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