O polemos epistemológico e ontológico de Heráclito (sobre os fragmentos 168-172 de Heráclito)
A epistemologia de Heráclito parece estar baseada na idéia de que o conhecimento do polemos depende dele – depende da nossa capacidade de ser parte dele, de termos, portanto, alguma capacidade de intervir. Conhecer não é vislumbrar, mas envolve uma interferência – está mais próximo das mãos do que para olhos. O polemos não é alguma coisa que pode ser contemplada desde longe, nem é um ponto de vista que pode ser alcançado se vermos as coisas de um ângulo – o polemos imiscui-se em qualquer tentativa de pensá-lo. É interessante considerar que Heráclito podia pensar o conhecimento sem qualquer associação com a produção de imagens, com a especulação ou com um ponto de vista distanciado ou uma visão de parte alguma – ele podia ter uma epistemologia inocente de qualquer privilegio das metáforas visuais. O conhecimento parece ser tributário dos nossos poderes de ação. O fragmento 131 fala que o conhecimento do polemos depende do polemos: conhecer é dádiva do polemos – ou tem que ser arrancado dos seus meandros. Conhecer é um dueto entre nossas capacidades e as capacidades do mundo. E nossas capacidades são potencialidades, disposições, estados direcionados para alguma coisa. Tais capacidades podem ser, e é razoável pensar que muitas vezes são, capacidades de representar e inferir. Tais disposições são ativadas por circunstâncias apropriadas – que não estão assentadas sobre estados atuais ou categóricos como ter uma crença ou dispor de uma justificação pronta. Conhecer o polemos não pode ser, portanto, ter uma imagem dele; não é tampouco possuir nada de fixo; qualquer conhecimento é sujeito às intempéries do que flui.
É plausível entender que Heráclito tinha tendências para um holismo quanto ao conhecimento, aos veredictos da experiência e ao significado. O fragmento 171 parece tratar explicitamente do que podemos capturar por meio da experiência sensível. A experiência não apresenta conteúdo atômico, individualizável independentemente do que mais é pensado, do que mais é sentido e, talvez, do que mais está presente. O conteúdo adquirido pela experiência depende do contexto em que a experiência acontece. Tudo aparece apenas no contraste com o que está
Os fragmentos 171 e 172 também tratam das de possibilidades e do que torna as coisas fixas. Se qualquer conhecimento do mundo se dá dentro do polemos, então tem que haver alguma diferença de velocidade (fragmento 170) para que alguma coisa possa ser capturada. O holismo requer um movimento – o de fincar o pé em alguma parte – para que o mundo de alguma forma afete o pensamento; mais que fincar o pé, parece que tem que haver alguma diferença de velocidade já que nada é fixo e assim Heráclito escreve que “[s]e pensássemos na mesma velocidade do que pensamos já não distinguimos nada.” A diferença entre o que pensamos e o movimento do pensamento entre uma inferência e outra é uma diferença de velocidade. A distinção de alguma coisa requer um contraste de velocidades. Assim também o moderno Heráclito enxerga as disputas entre realistas e idealistas – ou melhor, entre aqueles que asseveram a realidade de alguma coisa (como dos números, do passado ou das potências) e aqueles que insistem na nossa construção de tal coisa. O embate é aquele entre o que já estava pronto e o que é nossa construção ao pensar. Heráclito entende que o embate é refém da idéia de que as coisas têm uma criação ou já estão prontas – elas são de alguma maneira co-criadas por meio das diferenças de velocidade. Não há ponto fixo que transcenda o polemos, assim, não há uma mente que contemple coisas prontas ou as projete sobre o mundo – não há uma mente que atua como um ponto fixo indiferente ao resto do mundo, mas é sempre capaz de criá-lo total ou parcialmente. Deve haver uma outra explicação para que haja aquilo que Heráclito chama de circunstâncias fixas. O fragmento 171 termina com uma frase um tanto misteriosa sobre como surgem circunstâncias fixas; ele diz que “[a]penas porque as possibilidades têm como alvo tipos fixos de coisas é que vivemos entre circunstâncias fixas.” Podemos dizer que a experiência é apresentada como uma possibilidade – já que é dela que o fragmento parece tratar – e que tornar seu veredicto atual requer que fixemos certas coisas; que mantenhamos fixas algumas de nossas opiniões e, assim, que estejamos entre “circunstâncias fixas”.
A epistemologia de Heráclito parece também estar próxima de alguma forma de externalismo. Em particular porque nossas capacidades (cognitivas) podem passar ao largo do que tomamos como sendo nossas capacidades e porque elas não compõem nada que possa formar variáveis independentes do resto do mundo. As determinações se contaminam mutuamente – não há pensamento do tipo “as coisas são dessa maneira”, por mais removido e abstrato que seja formulado, que esteja isento das circunstâncias da sua formulação. Todo ponto de vista responde ao mundo não apenas porque vê alguma coisa, mas também porque é um ponto de onde se vê; vemos de onde estamos. O externalismo de Heráclito exorciza a imagem mental como uma variável independente porque não admite um ponto privilegiado de onde tudo aparece – sabemos mais do que pensamos, o pensamento é um sintoma das posições e disposições dos nossos corpos. Então a tese é de um holismo que não conhece as fronteiras de um suposto reino do pensável – de um suposto domínio por onde se move o pensamento. O pensamento é invadido por seus arrabaldes, seus arrabaldes são pensados por nossos estômagos, vísceras, vesículas e clavículas. É um holismo onde tudo toca tudo e qualquer epistemologia é parte de uma ontologia: aqui nascem algumas vertigens, mas elas podem ser curadas se deixarmos de lado a idéia de que o conhecimento produz paisagens. Aqui a epistemologia se torna parte de uma ontologia: Heráclito parece se juntar a um coro de Darwinismo metafísico que canta, “esqueçam toda criação”.
Aqui também vale evocar a imagem do tal efeito Doppler que Heráclito não hesita em chamar de metafísico. E o final do fragmento 171 pode ser entendido como um caso especial do contraste de velocidades que produz o efeito Doppler: aquilo que guarda possíbilidade é como um dispositivo de tornar as coisas fixas – as possibilidades estão direcionadas ao que é fixo. Potências, e também devires, são potências com um alvo estável. O devir mulher é o que instaura a categoria das mulheres. Pensemos no devir-bar. Muitas forças desviam um var dessa categoria fixa. Mas o devir mantém essas forças sob controle e fazem o bar permanecer sendo bar: se houver potência para tanto. Assim os bares se mantêm aproximadamente bares - os desvios são controlados. E vivemos entre circunstâncias fixas. O fixo está embrenhado no meio do que flui, não é alienígena, é intrínseco a ele. Mas apenas porque há um fluxo de potências é que a constância aparece – apenas para quem passa com alguma velocidade.
Un comentariu:
Muito, muito bom. Entendi muito a partir dessa relação do fixo com o que flui...
Trimiteți un comentariu