280. Tenho visto mais e mais pessoas se orientando pela ordem, confiando que boa parte do mundo já está pronta. Eu gosto de passear pelas ruínas de grandes projetos imemoriais; por lá há mais vida que nos centros das grandes cidades. Nos centros das cidades há gente esbarrando uma na outra, mas não vemos tanta ingovernabilidade quanto aquela do mato cobrindo o cemitério. Mas também as cidades são matos que cobrem cemitérios. O mato não esconde, faz esquecer. Não existe terra para além do Lethes – ele corre dentro de cada grão de polemos.
281. E há por toda parte elementos avulsos, ao léu. Existem espaços a toa no meio de toda ordem – meus olhos encontram estes pontos de fuga que me fizeram perder o amor a vida pela vida. Amo uma vida qualquer, solta, desprendida – mas não estou ao seu serviço.
282. O grande arquétipo do eu mesmo gera paixões devastadoras: amor a si, ódio a si. Quando amamos a nós mesmos temos que amar também a flora e a fauna dentro e em torno de nós que habilitam a preservar nossas atmosferas, nossos humores, nossas insistências. Logo notamos que queremos conservar também as circunstâncias à nossa volta, já que precisamos das condições de um museu para conservar as peças que nele depositamos. [...] que eu subsisti por muitos anos, mas nada de mim eu quis que se mantivesse, quase nada perdurou e eu nunca parei de envelhecer.
283. Os Efésios de outrora eram pedaços de mármore, respiração presa, pulsos fechados, músculos contraídos. Os Gazanos a minha volta hoje são como musgos – nada para eles é menos importante do que ficar parados onde estão e na mesma posição. Aqui eu sinto que as pedras escorregam [...] em um rio, em um rio.
284.Sempre desconfiei das antigas geometrias: a fixação pela repetibilidade. Elas nos ensinaram que as coisas irrepetíveis são só adereços ou borrões ou perturbações desprezíveis. No começo haviam quadrados, círculos, triângulos e depois vieram as peculiaridades. Já eu penso que não há repetível, nem sequer estes objetos abstratos são feitos só de ingredientes universais. Abstrair, me parece, é sempre exorcizar as peculiaridades para criar um espaço para o suposto âmago das coisas. Dizem que as geometrias servem para construir casas – e muitas outras coisas. Mas pensamos como se aquilo que serve para construir casas tivesse que estar presente o tempo todo. A planta de uma casa é o âmago dela quando ela está no papel. Mas ninguém vive nas casas quando elas estão no papel. Ninguém vive no âmago de uma casa.
285. Âmagos são como áreas privativas. Digo as pessoas, façamos um pequeno deslocamento: ao invés do âmago das coisas, falemos do polemos nas coisas. Não há nudez. Não há vísceras. Mas há destreza e virulência. E roupas sendo tiradas. Na destreza e na virulência, há vísceras.
286. Quando falo do polemos, não estou descrevendo o subterrâneo das coisas, estou inserindo subterrâneos nas coisas – não faço geologia, cavo túneis.
287. O polemos não é parte de um discurso, mas está na maneira de entortar a boca.
288. Me perguntam sobre a democracia e o que ela esconde. Também ela tem seus porões. Quando se fala em democracia, fala-se de uma democracia que fica convivendo com uma ordem pré-estabelecida – é como um descontrole controlado. Democracia com hora marcada. É como se as pessoas fossem coisas prontas, pós-polemos, e a democracia só pudesse começar quando as pessoas se amontoassem. Nem o polemos é resultado do polemos – para o polemos não há resultados. Nem é que há apenas tormenta, o polemos dorme e acorda, atormenta e faz estiagem.
289. O polemos é como o logos e como o eros (e como o eris, e como o conatus). Tem intensidades. Pode ser imperceptível para nós, como quando está astronômico ou geológico – trata-se sempre de um efeito Doppler. Nós podemos torná-lo mais intenso ou mais brando. Creio no fogo – um período messiânico a cada segundo. Não digo apenas que por toda parte há polemos, digo: aticem o polemos, ele está por toda parte.
290. Não repito que tudo é polemos – ainda que algumas vezes falo, berro e gesticulo assim. Não é a mesma coisa dizer que tudo é fogo, que tudo é água, que tudo é ar ou que tudo é physis. Cada tudo destes tem suas próprias delineações das coisas (e seus próprios riscos). O polemos arde e nos perpassa. O polemos não pode estar no púlpito e nem no palanque. O polemos é polemos de qualquer pedaço de pó que tenha cara de polemos. Um cosmos de polemos é uma ordem dos arruaceiros. Ou será que temos que esquecer o caos e deixar que surja uma ordem estabelecida a cada piscar de olhos?
291. [...] não pensem no polemos como princípio, e se quiserem nem como fim [...] está bem, esqueçam os meios também, pensem apenas nos fracassos, nos desassossegos. Pensem na bagunça onde as coisas acontecem. Falo da bagunça que não desaparece, e ela nem é o elemento subjacente.
292.O polemos não pode ser governo porque não pode ser oposição porque ele é feito de polemos. Também a physis é feita de physis e o amor é indiferente a qualquer imagem dele esculpida em mármore, pedra ou idéia. O governo e a oposição, os pólos – o polemos não tem partido, ele deixa as coisas partidas.
293.Em muitos lugares se luta por palavras. Em Gaza, terra das pedras explodidas, por circunstâncias.
294.Nunca sei em que rio eu já tomei banho – conheço apenas as margens.
295. Dizem que todos têm um preço. Digo que todas as coisas têm sua medida de violência. E sua medida de resistência à violência.
Intestina
Acum 4 ani
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