227. O desejo do polemos? Que nada permaneça! Amor pelos fracassos...
228. Horror a ordem? Trata-se de algo muito mais simples: tudo está aí, nunca como sempre. E o polemos no meio de tudo. Deixar fluir – e fazer fluir é o avesso de conservar. Conservar é represar, reter, amarrar ou fazer com que um rio leve o leito dos demais. Estar solto é também fazer soltar, atiçar. Ninguém pode descrever o mundo sem atiçar nada e sem prender nada. Não me leiam como se eu estivesse dizendo que há polemos ou que há logos ou que há qualquer coisa – quando eu digo o que há eu quero que alguma coisa se desprenda, se esvaia, se escorra. Não me leiam como se a polícia andasse por trás das minhas palavras – por trás das minhas palavras anda o ladrão, que deixa vazar as coisas de dentro de cada uma delas.
271. Amansamos a natureza para poder amansar as pessoas. As tais leis da natureza inserem medo e indolência na cabeça das pessoas. Tudo apenas obedece: estamos em um universo de servidão. E o que parece possibilidade é apresentado como se fora uma permissão, um salvo conduto, uma concessão – de algum soberano compassivo. Natureza domesticada, gentes obedientes. Para isso têm cada dia mais direitos. A cada ano que passa, torço mais pelo desgoverno. Sempre estive com os servos, e quero acabar com eles; os senhores não me importam Quem jamais pode ter alguma coisa mais a perder a não ser grilhões? (É que ganhar ou perder só ocorre ao que subjaze.)
272. Muitas pessoas confundem a si mesmos com guardiões de arquétipos. Por isso andam na linha: para não perderem aquilo que encontraram em si mesmos – combatem para continuarem profissionais, generosos ou intrépidos. Combatem para congelar neles aquilo que eles se tornaram. Ou para serem uma opção dentre aquelas que são oferecidas a eles. Existe um amor por arquétipos entre os leitores de biografias. Amar arquétipos é muitas vezes querer encontrar alguma coisa que, tendo precedência, tem prevalência sobre si.
273. A orientação por arquétipos promove os grilhões que impedem a soltura. Ser o arquétipo de um desejo – o arquétipo de um objeto de desejo (pronto). Assim se docilizam os cabelos, os torsos, os gestos e as genitálias. Trata-se de tentar satisfazer a algum ideal pronto para poder preencher alguma lacuna – para poder complementar. Ou seja, fazer do seu corpo uma peça de um quebra-cabeça. É assim que os corpos são governados: o desejo de encaixar é mobilizado pela artimanha dos arquétipos que fazem dos corpos peças ideais prontas. E depois ficamos prontos a desconfiar da decrepitude.
[Talvez uma ilustração de Jenny Saville ou de Botero]
274. A decrepitude não tem governo, ela é a physis sem cercas nem guardas. Com o envelhecimento aparecem solturas, as solturas dos que já tiveram que deixar os cubos de gelo derreter. Ele traz uma certa centrifugação, uma idéia de que as coisas se degeneram e permanecem – um sendo do degenerado que resta porque não ficamos acabados, não há acabamento – depois do acabamento tem a burilação das rugas, das tremedeiras, dos enfraquecimentos que tornam os corpos maleáveis. A centrifugação está por toda parte; a physis é uma força interna de dilapidação. E com a idade, deixamos que escapem todos os modelos – a decrepitude seca os rios, alaga os campos. Não podemos imaginar como são caquéticas todas as coisas que tocamos – e por isso imaginamo-las jovens, esbeltas, recém-criadas. Eu penso em cada uma das coisas a minha volta como sendo uma fonte da eterna velhice.
275. Amar arquétipos de si, querer se preservar da degeneração – querer subjazer. Assim se produzem pessoas governáveis, a mercê do medo. E elas começam então a fazer a grande política – aquela dos estados, dos exércitos, das leis da cidade. Acima de tudo, a lei pública que me garante a sobrevivência, abaixo dela, meus propósitos privados. Já quem se solta do amor aos arquétipos de si, se solta da governabilidade: fica ao léu no meio das maresias políticas, que são do tamanho de seus fragmentos. Falam de micropolítica como falam de micróbios – elas são pequenas apenas do ponto de vista dos súditos, dos corpos integrados, governados.
276. Onde não há leis é que há política. Eu sempre quis dizer: em parte alguma há leis. É que não há o que simplesmente há – em nenhum lugar a physis se transforma em inventário, nem em algum âmago das coisas, nem em algum lugar alhures, onde tudo está pronto. As coisas são sem âmago, como crianças que foram geradas de crianças. Nem o polemos, meio sem fim por onde as criações aparecem, fica parado em alguma parte. É fácil tirar da existência algum princípio geral que faça de qualquer coisa apenas mais do mesmo. Tento, a cada passo, não tomar a existência mais a sério do que qualquer outra ardência. Tampouco a história simplesmente há: nela intervêm sempre algum relevo, alguma insistência – ela é contada, recontada, descontada. Mas no vão entre as insistências e as desistências há bastante do polemos.
277. Uma associação do pensamento com o almoxarifado do mundo me apavora. Pensa-se como se estivéssemos descortinando alguma coisa. Estamos nus apenas quando não estamos vestidos – nada é mais explícito que nada. Tiramos as roupas, mas apenas para mostrar alguma coisa que estava escondida e que vai voltar a se esconder para que outra coisa possa ser despida – não há a última pele. Physis ama esconder-se: ninguém vai desmascará-la de uma vez por todas. Nenhum corpo pode ficar completamente vestido, nem completamente pelado – o pensamento não tem nada que ver com o universo nu. O polemos não é nada mais do que o biombo de onde as roupas são tiradas.
278. O logos: quando penso nele agora ele parece como uma toupeira, uma lavradura. As pessoas governáveis – por exemplo, aquelas governáveis pelo que andam chamando de lógica – são aquelas que tomam algumas palavras como mais poderosas que outras. Muitas vezes são as palavras escritas, ou aquelas que merecem ser escritas, publicadas e repetidas diante de qualquer novidade. Vejo os ontólogos e os vendedores de princípios gerais tentando encontrar joio no meio do trigo das palavras. Os lógicos dizem que já o encontraram: as palavras por meio das quais, dizem eles, o logos faz suas artimanhas. Mas eu sempre repito que há mais no universo do que um mantra escrito em um vocabulário recôndito, como uma mathesis universalis. O logos escava o mundo. Quando ele nos faz dizer que em tudo há buracos por onde se cavam túneis, ele não expressa um mantra que foi revelado: as palavras só podem se relacionar com o mundo se elas forem atoras, se elas forem agentes performativos. Nenhuma palavra deixa de ser preconceito. Nenhuma palavra fixa residência em sua escrita. Palavras, como todo o resto do que encontramos, não ficam prontas. Eu falo do logos, minha ferramenta de demolição, porque sempre estive cercado de quem acredita que pode haver umas palavras mágicas propícias para qualquer ocasião. Falo do logos, como falo do polemos e da physis, mas estas palavras não são rainhas da cocada preta, elas são apenas boas atrizes. Atrizes que não têm personagens fixas (no máximo, elas tem um estilo de atuar). Quanto a comunidade dos ingovernáveis que quero construir, nela não há palavra que é arché, qualquer palavra é constantemente desmantelada.
279. E não gosto que repitam trechos que encontraram dos meus escritos como se fossem slogans para qualquer campanha. Há querelas nas quais eu preciso dizer o avesso do que eu já disse – para outras, nem o avesso, uns grunhidos me bastam. Sempre tenho sustos com a palavra escrita. É como uma peça reprisada – como um acontecimento represado, preso, sem ar, um muro. Confio mais no esquecimento que nas bibliotecas.
280. Tenho visto mais e mais pessoas se orientando pela ordem, confiando que boa parte do mundo já está pronta. Eu gosto de passear pelas ruínas de grandes projetos imemoriais; por lá há mais vida que nos centros das grandes cidades. Nos centros das cidades há gente esbarrando uma na outra, mas não vemos tanta ingovernabilidade quanto aquela do mato cobrindo o cemitério. Mas também as cidades são matos que cobrem cemitérios. O mato não esconde, faz esquecer. Não existe terra para além do Lethes – ele corre dentro de cada grão de polemos.
281. E há por toda parte elementos avulsos, ao léu. Existem espaços a toa no meio de toda ordem – meus olhos encontram estes pontos de fuga que me fizeram perder o amor a vida pela vida. Amo uma vida qualquer, solta, desprendida – mas não estou ao seu serviço.
282. O grande arquétipo do eu mesmo gera paixões devastadoras: amor a si, ódio a si. Quando amamos a nós mesmos temos que amar também a flora e a fauna dentro e em torno de nós que habilitam a preservar nossas atmosferas, nossos humores, nossas insistências. Logo notamos que queremos conservar também as circunstâncias à nossa volta, já que precisamos das condições de um museu para conservar as peças que nele depositamos. [...] que eu subsisti por muitos anos, mas nada de mim eu quis que se manteve, quase nada perdurou e eu nunca parei de envelhecer.
283. Os Efésios de outrora eram pedaços de mármore, respiração presa, pulsos fechados, músculos contraídos. Os Gazanos a minha volta hoje são como musgos – nada para eles é menos importante do que ficar parados onde estão e na mesma posição. Aqui eu sinto que as pedras escorregam [...] em um rio, em um rio.
Intestina
Acum 4 ani
Un comentariu:
Olá Hilan,
Sou eu, Samir...estou comentando que estou comentando algo aqui mas na verdade não estou comentando nada.
Abraço e bom rever suas palavras
Samir
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